RESENHA: O Enigma de Kaspar Hauser de Werner Herzog

O Enigma de Kaspar Hauser, uma das mais famosas obras cinematográficas do diretor Werner Herzog (Alemanha, 1974), retrata a sôfrega realidade de um garoto que, desde a mais tenra infância, foi privado de qualquer interação social. Kaspar Hauser é, simplesmente, um nome próprio de origem alemã que foi incorporado ao título em português, uma vez que seu título original é: Jeder für sich und Gott gegen alle (Cada um por si e Deus contra todos, em tradução livre).
Kaspar é mantido, durante muito tempo, acorrentado em um calabouço. O rapaz, passa a sua vida, até então, na companhia de um cavalinho de brinquedo e, o único contato humano que tem é com a figura de um misterioso senhor encapuzado, que o mantém nutrido através de pão e água. O garoto, por não ser exposto a nenhum tipo de estímulo, não desenvolve a fala e tampouco possui características comportamentais de um ser humano socializado. As únicas palavras que Kaspar reproduz são “Quero ser cavaleiro, igual ao meu pai”. O garoto vive nestas condições até que o senhor decide tirá-lo das quatro paredes que lhe isolava do mundo e, assim que aprendeu a andar, foi deixado em uma praça de Nuremberg, Alemanha. Kaspar Hauser fica plantado, atarantado, até ser encontrado por um outro homem que o enche de perguntas que não é capaz de compreender.
 Sendo motivo de curiosidade pela população e acolhido por uma família, a qual se dispôs a ensina-lo alguns comportamentos padrões para a sociedade da época. É neste momento que Kaspar come sua primeira refeição usando talheres, e senta-se a mesa em companhia de outras pessoas. Comportamentos enraizados naturalmente aos indivíduos são encarados com estranhamento pelo garoto, que além de ser atingido por uma enxurrada de padrões comportamentais, é também submetido a aquisição de linguagem através de aulas metódicas, antes mesmo de ter experienciado a nova realidade, dificultando assimilação dos significantes aos seus significados. Percebe-se também uma grande dificuldade no que se refere a compreensão da noção abstrata e da noção de realidade e fantasia.
Kaspar passa por várias peripécias ao decorrer do filme. O garoto é entregado a um circo e, posteriormente, adotado por um professor. Em uma outra cena encontra-se sendo questionado por padres a respeito de Deus e, até o desfecho do filme, é alvo de dois atentados. Ele finalmente morre, e através da autopsia descobre-se uma anormalidade no cerebelo que afetou seu desenvolvimento intelectual. Tal descoberta faz com que as autoridades acreditem finalmente ter esclarecido o caso de Kaspar Hauser. Para os espectadores, porém, estas respostas sobre o excêntrico caso do rapaz ficam pendentes.
Este filme, ao narrar a história do protagonista, nos obriga a refletir, não somente sobre o que biologicamente somos, mas também, o que socialmente podemos nos tornar. Além de, implicitamente, sugerir que apesar da unicidade humana, somos resultado da exposição a uma realidade inerente a um meio cultural de uma determinada sociedade, sobre a qual adquirimos conceitos, conceitos estes que estabelecem uma relação direta à maneira com a qual experienciamos o mundo.
A importância do aprendizado da linguagem para o bom relacionamento interpessoal é o fator que mais chama a atenção. Kaspar Hauser menciona em uma de suas falas:
“Tenho que aprender a ler e a escrever para depois poder compreender. ”
Segundo Lev Semenovich Vygotsky (1960), o desenvolvimento do indivíduo está atrelado ao convívio social. Para o psicólogo a aquisição de conhecimentos se dá principalmente pelo fato de interagirmos com o meio ao qual somos expostos, além de frisar a importância das relações inter e intrapessoais que, através do processo denominado ‘’mediação”, somos influenciados e influenciamos aqueles que nos circundam. Nesse sentido, Vygotsky afirma em seu livro sobre a gênese das funções mentais que “nos tornamos nós mesmos através dos outros” (p. 56).
No que se refere a aquisição da linguagem, Kaspar, ao reproduzir as palavras “Quero ser cavaleiro, igual ao meu pai” somos instigados à reflexão de que parte do desenvolvimento da linguagem talvez esteja atrelada à estímulos e reforços, assim como pode-se observar na teoria de aprendizagem sustentada por B.F. Skinner. Entretanto, não seria prudente da parte do espectador crítico, atribuir todo o desempenho linguístico humano a vieses unicamente behavioristas. Kaspar, através de estímulos associa uma sentença que é sempre reforçada pela pessoa que o mantinha em “cativeiro”. É, perceptível, porém, que somente o faz por repetição e de forma mecânica e não porque reconhece o caráter semântico da sentença, o que nos faz refletir sobre outras teorias disponíveis na literatura a respeito.
O filme nos faz refletir, também, a respeito da teoria de Noam Chomsky (1957). Para o linguista, somos dotados da faculdade da linguagem, que seria expressada principalmente por um dispositivo de aquisição alojado em nossos cérebros, que é ativado através do convívio em sociedade, pelo qual a chamada “gramatica universal” é moldada. O fato de Kaspar Hauser ter vivido parte de sua vida privado de contato social fez com que ele não desenvolvesse uma língua. Porém, se ele estivesse sido exposto a este produto social, sabemos que a teria desenvolvido. Um cachorro, entretanto, mesmo tendo sido domesticado e vivido durante muito tempo na companhia do homem e sido exposto a estes mesmos estímulos não desenvolveria a língua. Sustentando a teoria Chomskiana de que a faculdade da linguagem é o que nos diferencia dos demais seres.
Posteriormente, ao ser introduzido à vida em sociedade, Kaspar passa por diversas dificuldades no que diz respeito à aquisição de novos conceitos, o que ilustra bem a teoria de Piaget (1967) que infere que a aprendizagem deve ser mediada por “desequilíbrios” que possibilitem aos indivíduos a saída de suas zonas de conforto, fazendo-os confrontar novas experiencias, e através delas adquirir novos conhecimentos, muito embora Kaspar apresente substanciais dificuldades durante esse processo.

Essa obra do diretor Herzog pode ser analisada por várias óticas. As experiências vividas por Kaspar Hauser exemplificam diversas teorias no que se refere à aquisição da linguagem. Embora haja correntes de pensamento bem distintas, podemos por fim, concluir que, em vez de serem teorias conflitantes, como muitos artigos o trazem, são na realidade, teorias complementares. Nenhum desses grandes pensadores teria chegado a uma conclusão se não fosse pelo trabalho desenvolvido pela corrente “oposta”. Até então, estas questões levantadas por estes teóricos ainda permanecem em aberto e no que se refere à aprendizagem, há uma tendência, de acordo com as mais atuais correntes, de adoção da chamada “abordagem híbrida” que, na prática, faz uso de várias teorias na busca de resultados melhores.

QUADROS, Ronice Müller de; FINGER, Ingrid. TEORIAS DE AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM. [S.l.: s.n.], 2007. 162 p.
PIAGET, J. SEIS ESTUDOS DE PSICOLOGIA. Trad. Maria A.M. D'Amorim; Paulo S.L. Silva. Rio de Janeiro: Forense, 1967. 146 p.
VYGOTSKY, L.S. A FORMAÇÃO SOCIAL DA MENTE. São Paulo: Martins Fontes, 1984 [org. M. Cole e outros – textos originais de diferentes datas]. (1934/1987)
VYGOTSKY, L.S. PROBLEMS OF GENERAL PSYCHOLOGY - The Collected Works of L.S. Vigotski - volume 1. Nova Iorque: Plenum Press, 1987a [original de 19340.
FILMOGRAFIA:

HERZOG, W. O ENIGMA DE KASPAR HAUSER (Alemanha, 1974).

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