Josué ninguém

Abafado pelo barulho estridente dos fogos de artifícios, fora o choro que, pela primeira vez se encontrara com os tóxicos, porém, necessários fragmentos de ar. Fragmentos estes que se adentraram àquele tão novato pulmão do pequenino que, segundos antes, nascera na sala de parto mal iluminada de número quatro. Veio a vida no único dia do ano em que se dá, formosamente, as boas vindas ao primeiro dia de um mês, mas por ter sido fruto de uma relação indesejada, Josué não fora, da mesma forma, cortejado. No pronto socorro de Santa Sofia o pequeno Josué veio a existência e após complicações no parto, fora entregue aos braços de sua mãe já fora do risco eminente que minutos antes corria. Eis a máxima da vez: Salvaram-no da morte, mas não o salvaram da vida.
Após o período de dolorosa amamentação, enrolado em um lençol que já mal cheirava, encontrou-se Josué, enjaulado por quatro paredes de papelão e graças a sua mais inata habilidade fora encontrado, aos prantos, por uma senhora que pela rua, desnorteadamente, passava. Dona Ermelinda, apaixonada por crianças, afagou o pequeno que já em seus braços, acalmara-se. A senhorinha fora, em um passado longínquo, uma mãe sem igual para os seus três já crescidos filhos e seria, indubitavelmente, uma ótima mãe para o pequeno Josué se pela fatalidade do acaso, não sofresse há cinco entorpecedores anos da medonha doença que faz-nos esquecer das próprias entranhas.
O menino de curiosos olhos negros e de pele tão morena quanto o ébano, fora entregado em uma casa acolhedora do bairro e lá passara os primeiros doze anos. Josué passava a maior parte do tempo entre os brinquedos malcuidados que eram doados pelas outras crianças uma vez que já haviam se enfadado deles e enquanto as demais crianças eram levadas por casais aparentemente felizes, Josué era, por algum motivo que ele mesmo não entendia, rapidamente negado por qualquer casal que fora, posteriormente, julgado como “apto” a cuidar e guiar aquelas crianças para um futuro melhor.
Alguns outros anos mais tarde, aos dezesseis, era possível, ao atravessar aquelas ruas comandadas pelos semáforos, esbarrar-se com o jovem Josué entre a rua treze e dezessete, com seus malabares feito a punho distraindo os enfadonhos motoristas do centro da cidade. Ao esverdear do sinal, recebia buzinadas e insultos como recompensa. Ao cair da noite, se juntava Josué com os companheiros de calçada que a vida lhe impusera. Compartilhava experiências e trocados conseguidos até o fim do expediente. Em dias frios, corroíam-lhe as peles dos lábios, os ventos gelados. Já naqueles calorosos, lhe faziam companhia besouros, baratas e bichinhos de luz. Em épocas festivas, pessoas de bom coração distribuíam entre os habitantes de calçada, o pão acariciava, de certa forma, a fome que dançava em seu estômago, mas não lhe fazia sequer cócegas na fome que tinha a alma.
Aos vinte e um fora preso por ter furtado uma maça da quitanda do seu João e após liberto, aos vinte e quatro regressara a mesma cela por ter furtado algo equivalente a uma tonelada de maçãs. Josué até frequentara a escola, mas as palavras nunca lhe fizeram caso, tal como a maioria das pessoas que passaram por sua vida. O trabalho honesto e digno lhe dificultava a limitada educação e os julgamentos sempre tão alheiamente imprecisos não cessavam ao abrir dos semáforos. Tudo o que precisava era de uma mão, mas durante toda sua vida, ofereceram-lhe sequer o dedo mindinho.
No dia 14 de outubro daquele mesmo ano, rendeu-se enfim a determinante pressão do meio que o englobava. Em um ato desesperador, apoderou-se do celular de um rapazote que exibia seus tênis de marca em um micro-video do Snapchat. Em abrupto desespero correu desembestado pelo arvoredo da rua Virgílio com o celular cerrado entre seus cinco dedos que exerciam a força de dez. O policial, que tudo vira de longe, desferiu impetuosamente sua pistola contra o vulto de Josué, que fora ingenuamente surpreendido com o seu próprio sangue colorindo de vermelho a blusa branca que usava. Ao quarto tiro consecutivo era ratificado o aborto artificial daquele jovem aos seus ínfimos vinte e quatro anos. 



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