Lucidez


Entrou Estevão em seu escritório – depois de ter, finalmente, almoçado volumosas quantias – para continuar o trabalho que postergara até então. Sentou-se em sua poltrona e – enquanto desfrouxava a incômoda gravata – começou a assoviar canções daquele tempo em que se encontrava com os colegas no tão movimentado barzinho da esquina.
Os dias deste ano que se esticava lhe acometiam tremenda solidão: não havia se quer pisado em sua própria casa a tempo de jantar em companhia da esposa e filhos. Tirou o saque que mantinha em seu armário – especialmente para dias que, como aquele, lhe amargavam a existência – tomou dois goles diretamente do bico e depois de fazer uma cara que combinava com aquele dia, finalmente se sentou em frente a tela do computador.
Ao passo do tempo, às 19 horas, esticou-se até ouvir das colunas, estalos em redenção. Levantou-se e se pôs a caminhar pelo silencioso escritório a fim de esvair-se do tédio paralisante que o cérebro lhe acometia após várias e várias horas de puras fórmulas e planilhas. Correu os olhos pelos diplomas emoldurados e finalmente deparou-se com um aquário esférico postado em sua magistral estante que durante muitos meses passara despercebido. Pegou um cilíndrico copo de cristal para tomar o saquê que sobrara na garrafa anteriormente aberta e intrigado olhava o peixe beta que nadava para lá e para cá em seu aquário limitante. Via o pequeno peixe que, frequentemente, numa aparente tentativa de livrar-se do tédio, investia-se contra a água. O peixe, de nenhum discernimento crítico, gastava seus poucos dias terráqueos, agitando as espalhafatosas nadadeiras para chegar exatamente à lugar algum.
O reflexo daquele minúsculo aquário lhe fez chegar aos olhos – que até então viam, mas não enxergavam – a verdade irrefutável. Estevão ao topar-se com a veracidade configurada em um mini aquário, sentiu um calafrio lhe percorrer da espinha até o dedão do pé. Deixou-se sentar em sua poltrona e após dez encarceradores minutos de estupefato silêncio, proferiu:
- Esse peixe passa sua vida limitado por um cubículo de água que lhe impuseram. E eu, por um cubículo de ar que eu mesmo me impus.
Com as janelas da alma escancaradas, fitou com demorada curiosidade todos aqueles indícios de que seus antigos sonhos lhe haviam posto em cativeiro e percebeu que aqueles sonhos já não mais o representavam. Aos quarenta e cinco anos de idade, Estevão – após um estalo de juízo – permitiu-se sonhar com uma nova realidade e, a partir daquele dia, resolveu dedicar-se mais à esposa e aos três filhos que, graças as artimanhas do tempo, já lhe ultrapassavam os centímetros.
Levantou-se, pegou seu paletó e vislumbrado com o futuro que, em dez minutos de lucidez havia idealizado para si, caminhou em direção ao estacionamento, àquela hora já vazio. Deteve-se a admirar o imenso cemitério de estrelas e agradeceu a sabe lá qual ser superior que lhe havia dado esta segunda vida. Entrou em seu carro e já fazia planos para as próximas férias de verão e imagens de seus filhos sorridentes lhe invadiram o palco da memória. Em meio a devaneios, a realidade lhe escapava aos sentidos e ao som ensurdecedor de uma buzina tudo se tornou branco, como se a lucidez lhe tivesse elevado a um patamar mais sublime do que qualquer outro que a vida lhe havia posto.
No dia seguinte, manchetes estampavam os principais jornais da cidade, relatando um trágico acidente na rodovia. Estevão nunca chegou a externar aos filhos seus planos de acampamento e maratonas de filmes que assistiriam juntos. Quão felizes poderiam ter sido se o motorista do caminhão que esmagara os sonhos de estevão, não tivesse dormido ao volante?
Seus filhos deveriam saber que, em alguns fragmentos de memória de seu pai, foram felizes. Foram felizes durante 17 minutos e 22 segundos, mas a vida não é como a gente quer: entre o sonho e a realidade, existe um anjo mal que resiste ao nosso desejo.  


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