Menina

Menina, cabelos lisos, olhos curiosos, tão negros como a aura das almas ao seu redor. Dormia, tranquilamente, em seu colchão ao lado dos pais. Tinha medo do escuro, dizia: mal sabia que a escuridão que estava por vir.  A porta abriu-se lentamente, ouvia-se passos pelo corredor escuro e uma voz familiar cochichava palavras aflitas. Segundos depois a menina fora brutalmente acordada por um choro atravessado na garganta alheia: "Diga que é mentira, pelo amor de Deus”.
Uma senhora de grandes óculos se aproximou: "Mamãe está nervosa, papai vai conversar com ela" disse a vovó em uma explicação sussurrante. A pequenina coçou os olhos sonolentos e abraçada a seu travesseiro, caminhou pelo chão gélido do corredor de sua casa, atravessou o quintal sem entender muito bem porque havia acordado antes mesmo do sol, que quase sempre, acordava antes dela.
Era um dia cinzento em um quarto amarelado, Menina assistia desinteressadamente ao pica-pau, o desenho animado. Olhos verdes lacrimejantes a fitavam de longe e em um suspiro lhe disseram: "Mamãe saiu com papai e logo estará de volta, porque não vem cá e toma uma xícara de chá?". No clima frígido de finais de abril um chá cairia bem, mas Menina preferiu ficar debaixo dos cobertores, não queria se expor ao frio e até parecia que sabia: sabia que esta seria a última vez que se aqueceria por dentro: a última vez que não sufocaria um sentimento.
Foi quando o estomago reclamou de fome. "Já era hora!" Exclamou vovó "Por que não tira o pijama?" Perguntou em tom convidativo. Menina levantou-se, espreguiçou-se e pelos tacos gelados caminhou vagarosamente até topar-se com a porta da sala, onde o carpete lhe fazia cosquinhas aos pezinhos. Foi quando o telefone, mais uma vez tocou e a menina atônita entre a copa e a sala, de longe, com o olhar negro da curiosidade, tentava desvendar as emoções da avó: a verdade é que não estava em um dos seus dias mais felizes.
Saíram de casa, a tevê ficou ligada e vovó nem se ateve em fechar a porta atrás de si. Para a rua, menina valente lhe dava as caras: caminhava apressadamente agarrada à mão de vovó sem se atrever a perguntar o motivo de todo aquele alvoroço.
Chegaram e pela primeira vez, a menina sentiu o que os adultos chamam de dor: viu-a refletida nos olhos de mamãe que àquela altura fitavam o vazio. As lagrimas lhe escorriam pelo rosto, desconsoladamente. Mas por que, mamãe? Por que choras incessantes lágrimas?
Doía, doía bastante. Ou pelo menos, parecia doer. Todos aqueles que Menina conhecia choravam, choravam, choravam e Menina seguia sem entender.  E ninguém ali acreditava na capacidade de entender da menina. Uma complexidade aquilo tudo, afinal, quem é que entendia? "É o mistério da vida, minha menina.", foi tudo o que lhe disseram.
Partiram todos em carros em direção ao desconhecido e os olhos gritavam em um inaudível desespero. O vento gelado lhe castigava os lábios úmidos e lutava contra os fios de cabelo que insistiam em cobrir-lhe os olhos. Menina desamparada: até se esqueceram de sua miúda presença. Atravessou a rua, que aquele dia deserta e foi ter-se com o vovô. Já era a hora da despedida, um adeus não correspondido.
Se aproximou em pequenos passos e de perto viu os curativos que camuflavam as feridas. Um rosto sereno que não aparentava ter medo de escuro. Lhe diziam e sim, podia entender. Sabia o que significavam aquelas palavras, já as ouvira antes. Morreu, faleceu, virou estrelinha: há tantas outras maneiras de expressar o inexpressável. Quantos eufemismos são precisos para amenizar a dor humana? Para compreender a real dimensão da morte é preciso viver, e Menina apenas começara.
Lágrimas e mais lágrimas era o preço caro da ignorância que a menina pagaria em parcelas desumanas durante sua vida. Mas até que, para alguém que de nada sabia, já sabia demais para seus ínfimos sete anos sobre este mistério chamado vida.


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